quarta-feira, 23 de maio de 2012

Diário da Virada Cultural

Publico aqui o diário da Virada Cultural escrito por um dos organizadores, é um relato sincero dos fatos que se passaram no sentido de tentar barrar as atividades do Se Vira Ribeirão, que foi uma iniciativa de artistas, estudantes e sociedade organizada para realizar uma programação de atividades culturais na cidade nos dias 19 e 20 de Maio, todas as atividades foram gratuitas e autogestionadas.
Sexta-feira, dia 18 de maio de 2012, véspera do evento “Se Vira Ribeirão – Virada Cultural Independente”. Sete horas da noite. Uma ligação da prefeita para o meu amigo Jonas, que estava ao meu lado, gera apreensão. Começava ali a última batalha para realizar a Virada. Em passos acelerados, fomos do Centro Cultural Palace até à sede da Prefeitura Municipal, cerca de cinco quarteirões. Ao chegarmos ao Palácio do Rio Branco, nos deparamos imediatamente com ela e seu fiel secretário da Casa Civil, uma recepção displicente e um recado bem dado: Uma ação do Ministério Público, disparada pelo alerta da Polícia Militar, obrigava-os a obstar o evento mediante a ausência de alguns documentos.
Um pouco mais tarde, neste mesmo dia, depois de cogitar uma mudança de planos em relação aos palcos que seriam montados nas ruas José Bonifácio e Visconde do Rio Branco, reunimos a comissão organizadora para explicar a situação. A apreensão agora era geral, mas a união naquele momento parece ter se consagrado. Ficou claro que não desistiríamos, o entusiasmo e o desejo de realizar aquele sonho não seria páreo para uma ação burocrática do Estado em completo desacordo com a vontade coletiva que estava posta em prática. A sociedade civil já estava organizada e muito bem decidida sobre o que fazer!
Sábado, dia seguinte, nove e meia da manhã. Ao chegar ao Mercadão, na zona central da cidade, pude observar uma grande movimentação de pessoas em torno dos equipamentos de som que eram montados. Ali haveria Circo, Gastronomia e Samba, entre outras artes. Estava começando a Virada Independente e já havia sorrisos nos rostos surpresos dos cidadãos e cidadãs que ali passavam. Pensei, naquele instante, que a nossa maratona cultural estava apenas começando, seriam mais de trinta horas de evento, isto é, se tudo corresse bem e o Estado não agisse impiedosamente frustrando os nossos planos.
Do Mercadão fui a pé até o Parque Ecológico Maurílio Biagi em companhia de uma amiga que fiz durante a organização do “Se Vira”, Thainá, que, apesar de ter apenas dezesseis anos de idade, também estava se virando e participando da construção do evento. Chegando lá, com o alvará do Parque em mãos para entregar ao coordenador as atividades que aconteceriam lá, tive uma visão tão animadora quanto à que tive no Mercadão: Um grupo grande de espectadores já dançava ao som de uma banda de blues. Sim, blues sábado de manhã num parque ecológico, até hoje nunca tinha visto isso naquele lugar. Aos poucos, a confiança de que tudo daria certo aumentava, pois as notícias diziam que no Cauim, Teatro Ribeirão Em Cena e demais locais tudo estava caminhando bem também.
Ainda no sábado, quando o relógio apontou duas horas da tarde, as ruas José Bonifácio e Visconde do Rio Branco foram fechadas para o trânsito. Era o Complexo da Baixada. Ao chegar ao local, observei um intenso trabalho de montagem de palcos e tendas. Os equipamentos de som, iluminação, entre outros, eram carregados pelos braços daqueles que mais tarde estariam cantando e tocando. Incrível, os artistas não estavam em seus camarins aguardando o palco ser montado, estavam montando eles e elas próprias, ou seja, participando do processo integral.
Eis que, durante a tarde, chega ao local um senhor de camisa vermelha, todos o olhavam de forma desconfiada. Aquele senhor era o fiscal da prefeitura, tinha uma simples missão: Acabar com tudo aquilo que estava sendo erguido. A partir disso, dentro do escritório do Memorial da Classe Operária, prédio histórico da Rua José Bonifácio popularmente conhecido como UGT, passaram-se algumas horas de negociação. A apreensão voltou à tona, apesar de que lá fora os palcos continuavam sendo montados a todo vapor e o público começava a chegar. O momento mais crítico da negociação com o fiscal municipal foi a partir da chegada da Polícia Militar. Não havia medida judicial, mas o conselho era claro por parte deles: Parem o evento ou serão responsabilizados.
Enquanto isso, fora da UGT, o evento começava. No palco dois, um grupo percussivo já atraía um público considerável dando início à festa em detrimento dos conselhos bem intencionados dos “homens da lei”. Nessa hora, procurei manter a calma e busquei uma visão geral, rodava o Complexo analisando o trabalho e as pessoas. Foi quando percebi que a apreensão não era mais restrita apenas aos organizadores, naquele momento o público presente já estava igualmente preocupado com a possibilidade daquilo tudo acabar. Foi então que, enquanto imprensa, polícia, organizadores e o senhor de camisa vermelha discutiam exaustivamente, formou-se, na porta da UGT, uma aglomeração que gritava em coro: “Não para o evento não, se vira Ribeirão!”. A legitimidade não era mais burocrática, era popular!
A “briga” termina com Jonas sendo encaminhado ao distrito policial, fora indicado como responsável e assinaria um B.O. assumindo a responsabilidade sobre tudo o que pudesse acontecer ali. No entanto, como disse Renato, um dos organizadores, todos éramos Jonas naquela hora. Enfrentamos, juntos, a ameaça de repressão e estávamos convictos de que o melhor seria continuar e promover aquele ato a qualquer custo. Havia cumplicidade, confiança e muita vontade entre nós, e então a força coletiva venceu!
Horas mais tarde, vendendo cerveja num carrinho de mão, tive um retrato geral daquele evento: Intervenções artísticas de todos os tipos, pessoas alegres com o sentimento de realização e pertencimento. Ninguém havia pagado ingresso, pelo o contrário, muitos ali haviam trabalhado de graça para aquilo acontecer. Nos três palcos, artistas locais derramavam seus talentos sobre o público que aumentava a cada minuto. Durante a noite do sábado e madrugada do domingo, só ali no Complexo da Baixada, foram cerca de 40 apresentações musicais e mais exposição fotográfica, intervenções de circo e malabares, debates, exposição de filmes, entre outras ações espontâneas.
Domingo, dia 20 de maio, meio dia. Depois de um breve descanso, volto ao Complexo. Ali ainda aconteceriam mais shows. Palcos intactos, artistas chegando, café e um almoço coletivo preparado pelo núcleo gastronômico formado por uma equipe que se virou na cozinha. A festa recomeçaria em poucos minutos e a sensação geral era de muita satisfação. Ali dentro da UGT, espaço de apoio da produção, a equipe de comunicação alimentava as redes sociais com informações e fotos da Virada, que tinha visto o último show da madrugada terminar às oito e meia da manhã.
Tudo correu bem, mais uma vez. O público compareceu em peso e como era de se esperar delirou com os shows e apresentações. No “Espaço Ambiental”, uma discussão sobre o novo Código Florestal era brindada por integrantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que, por sua vez, brindavam o evento com uma banca de alimentos rurais orgânicos. Parcerias incríveis podiam ser notadas, uma integração de elementos mais distintos possíveis. Numa sequência incrível, o público pode apreciar maracatu, teatro de rua, jazz, heavy metal, rockabilly, rap, reggae, etc. Pensei: “estamos ensinando o poder público como se faz uma Virada Cultural”. Não foram poucas as pessoas que ouvi dizerem que esta já era a melhor de todas até então realizadas na cidade.
Por volta das nove da noite do domingo, o último ato foi realizado no palco um. Diversos músicos que também organizaram o evento subiram ao palco para o “Se Vira Jam”. O refrão da música era representativo: “A gente se vira e faz acontecer. A gente se vira, só depende de você!”. Na loja ao lado do palco, corações eram colados para simbolizar o amor e tudo o que ele é capaz de mover. O encerramento não poderia ser melhor. Terminamos a noite desmontando os palcos, carregando as caixas, fios, caibros, ferragens e tablados. O cansaço já era nítido e generalizado, tanto quanto o sentimento de felicidade pelo sonho que acabara de se realizar.

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