quinta-feira, 1 de março de 2012

Sacra Proprietas


A concepção do direito de propriedade, neste país, permeia o imaginário social como um bem sagrado, mas se existe algo de sagrado na propriedade é sua função social. Após 80 anos, a Constituição Republica­na de 1988, insculpiu no art. 5º, Inc. XXIII,  famigerada por uns e famigerada por outros, como bem sabia Guimarães Rosa, fundadora do novo Estado Brasileiro, acolheu o prin­cipio insculpido na Constituição de Weimar (1919) a qual já de­terminava que a função social é fator constitutivo do conceito de propriedade.
Assim, entre nós, e com atra­so de quase um século, a propri­edade da terra, seja rural ou urbana, só possui legiti­mação quando o proprietário atende, concomitantemente, con­forme artigo 186 da Constituição Federal, a três elementos os quais asseguram propriedade sob o seu jugo, o eco­nômico, o social e o ambientai; na ausência de qualquer um de­les a propriedade não pode ser objeto de proteção jurídica por meio das ações possessórias.
Surge, então, uma equação a ser solucionada, propriedade que não cumpre os desígnios consti­tucionais versus populações que por descaso do Poder Público se veem forçadas pela realidade a ocupar áreas abandonadas que em pouco tempo tornar-se-ão favelas.
O Poder Judiciário, ante a situação a qual a realidade impôs, resolve por bem conferir instrumentalidade ao Direito que este não possui, perpetrando atos bárbaros em desfavor de famílias paupérrimas, por vezes, miseráveis, como os que aconteceram recentemente na Favela da Família em Ribeirão Preto e na área chamada Pinheirinho em São José dos Campos; o faz em nome alheio, lastreadas no imaginário social da sagrada propriedade.
Ocupação de áreas que não cumprem sua função social, taxativamente, não é caso de policia!
Sob a óp­tica penal é de ab­soluta impropriedade considerar as ocupa­ções de propriedades que não cumprem sua função social delito de quadrilha ou crime de esbu­lho possessório. Quanto àquele o art. 288 do Código Penal tem como núcleo central o verbo as­sociar-se, e segundo o eminen­te Desembargador Alberto Silva Franco, necessário se faz para a prática deste crime uma série in­determinada de delitos e um con­tínuo liame entre os associados para a concretização de um pro­grama deliquencial; não é o caso, brinda-nos o mestre, “movimen­tos sociais dessa natureza nun­ca terão condições de ser con­fundidos com o delito de qua­d rilha, cujos elementos estão voltados para a prática delituo­sa e não para a reconstrução de uma sociedade mais humana, solidária e igualitária e bem me­nos injusta e marginalizadora”. Quanto ao crime de esbulho pos­sessório, não há subsunção à Lei Penal, pois ocupação de propriedades que não atendem à função social não geram nenhum agravo ao direito de propriedade, massim, como acentua o Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, do STJ, no julgamento do HC 5.574, o exercício “do direito de reclamar a eficácia e efetivação de direi­tos, cujo programa está coloca­do na Constituição. Isso não é crime; é expressão do direito de cidadania”. Assim, quem sus­tenta, simplesmente, a ilegalidade das ocupações de propriedades que não cumprem sua função social, e até, absurdamente, o uso da vi­olência não está preocupado com o Estado De­mocrático de Direito, m as, sim­plesmente em manter as estrutu­ras de injustiça da sociedade, que originaram as próprias ações combatidas. O que é ilegal e in­constitucional, afinal, é a exis­tência de propriedades que não cumprem sua função social, em um país em que milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza e que dignidade é um nome bonito, mas distante da realidade.
Mas, negligente seríamos se não abordássemos ou perdêssemos de vista a situação do proprietário que não cumpre a função social da propriedade. O que fazer com o impasse daqueles que leem de forma desatenta a Constituição Federal e entendem que a especulação imobiliária está lastreada no fundamento da República Federativa do Brasil em seu inciso IV, não percebendo que não é fundamento da República a livre iniciativa e sim os valores sociais da livre iniciativa, e os ocupantes de terrenos os quais antes de sua chegada restavam desertos. É lídima, cristalina a resolução do problema, buscar no Poder Público a indenização pela desapropriação indireta nos termos do art. 2º, IV, da Lei 4.132/62 e art. 5º, XXIII, da Constituição Federal. Conforme acórdão proferido na apelação, n. 823.916-7, J. 27/08/02 – RT 811/2 43: “Os bens indiretamente expropriados, porque aproveitados para fins de necessidade, utilidade pública, ou de interesse social, não podem ser reavidos in natura, impossível vindicar o próprio bem, a ação cujo fundamento é o direito de propriedade, visa, precipuamente, à prestação do equivalente da coisa desapropriada, que é a indenização... (STF, RTJ 61/389)”.
Findo, afirmando que Ribeirão Preto está na iminência de uma nova catástrofe social. Recentes decisões põem em risco a integridade física e moral de centenas de famílias que serão deixadas ao relento. A Comissão de Direitos Humanos da 12ª  Subseção da OAB prenuncia esta hecatombe conclamando os advogados que pugnem, a sua forma, ao Poder Público que não prolate atos injustos, inconstitucionais e ilegais afim de assegurar a Paz social a Ribeirão Preto.
Vanderley Caixe Filho
Coordenador da Comissão de Direitos Humanos da 12ª  Subseção da OAB de SP
vcaixe@gmail.com

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